sexta-feira, 11 de julho de 2008

O artista

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Recebido via e-mail.

Cheguei de volta de minha aventura para o Pólo Norte. A viagem foi tudo que eu imaginava e mais um pouquinho. Nada como cair fora do dia-a-dia...

Como estava a bordo de um navio numa das mais remotas regiões do planeta, experimentei algumas coisas inéditas. Quinze dias sem e-mail, internet e celular, por exemplo. Não dá para me imaginar vivendo e trabalhando sem celular, sem internet e sem e-mail hoje em dia, mas ali não havia escolha. Tive que passar quinze dias sem e então fiz outras coisas. Li. Conversei com pessoas. Assisti a palestras. Dormi.

E um dia aconteceu uma coisa interessante.
A bordo do navio havia um artista plástico contratado para realizar com os passageiros algumas atividades especiais. Não me interessei por pintar quadros ou fazer instalações e fiquei na minha, mas durante um jantar com o artista, contei de minhas atividades e falei que eu era cartunista. Ele insistiu para que eu participasse das atividades. Quando cheguei à biblioteca, após o jantar, ele me deu um bloco de papel para aquarelas, um marcador, um lápis e uma borracha e disse pra eu me divertir.
Repentinamente eu estava ali, com tudo que sempre amei: lápis, borracha e papel. E comecei a desenhar. Desde 1982 não me lembro de ter dedicado tantas horas ao cartum. Fiz um, dois, três... No começo meio enferrujado, mas aos poucos as idéias foram brotando e no dia seguinte pela manhã eu havia feito dezoito cartuns. Todos focados nos assuntos da viagem. Ao final do terceiro dia eram 28 cartuns, sem nenhum problema, sem sofrimento, de primeira, naturalmente.

Que coisa curiosa. A falta da internet, do celular e do e-mail fez com que eu retomasse minha velha atividade de cartunista com amor e com paixão. Virei um artesão outra vez. Sem querer nada em troca, apenas a oportunidade de expressar-me através de minha arte. E as idéias foram fluindo como se estivessem guardadas à espera de uma chance para sair. Eu mesmo me impressionei com a facilidade e lembrei-me que uma vez o Zélio Alves Pinto comentou que o cartunista nunca perde a mão. Mesmo parado, seu traço está amadurecendo internamente. E deu o exemplo do Borjalo que – como eu – ficou mais de vinte anos sem “cartunar”. Quando retomou, seu traço estava melhor que antes...

Pois bem, naqueles dias a caminho do Pólo Norte em que voltei a ser um cartunista, refleti sobre minhas escolhas, sobre o tempo que passei e passo “trabalhando” enquanto deixo de lado pequenas coisas que são minha essência. No caso dos cartuns, eles foram deixados de lado porque fui levado a acreditar que eles não são “sérios”. São apenas manifestações artísticas, veadagens que não levam a lugar nenhum. Molecagens que nada valem diante das dificuldades de ganhar a vida, de produzir, de fazer algo de útil para a sociedade. Como o meu vizinho engenheiro. Ou seu cunhado médico. Ou sua irmã advogada. Ou seu amigo empresário...

A experiência artística foi aos poucos jogada para escanteio diante de uma sociedade cada vez mais pragmática, acostumada a valorizar apenas aqueles que produzem bens tangíveis, materiais. E com isso milhares, milhões de artistas ganham suas vidas hoje como escriturários, bancários e padeiros. Ou vendendo seu talento para a publicidade – a forma que a sociedade encontrou para transformar arte em mercadoria.

Pois quero propor um exercício. Dentro de alguns dias começam as Olimpíadas. Assista a cerimônia de abertura e veja quanto tem ali de arte. E depois reflita sobre a razão daquilo tudo se a sociedade não dá valor à arte.

O ser humano precisa de arte. Um quadro que nos comove, um poema que nos enleva a alma, uma música que nos leva às lágrimas, uma peça de teatro que nos faz refletir, um cartum que nos faz sorrir, uma escultura que nos prende o olhar... São experiências necessárias para quem quer uma vida completa.

Naquele navio a caminho do Pólo Norte – sem as armadilhas que consomem o meu tempo – através da arte voltei a ser aquilo que eu sempre quis ser: simplesmente eu.

Agora preciso ir. Tenho três mil e-mails atrasados pra responder.

Luciano Pires
www.lucianopires.com.br
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O podcast da semana abre com uma frase de Paul Valéry: “O que separa a alma do corpo não é a morte, é a vida.” Vamos partir de algumas experiências pessoais para falar de nossas almas, das coisas que ficam nelas gravadas. E até de abraços vamos falar! Na trilha sonora temos Renato Piau, Milton Nascimento e Gilberto Gil, Zélia Duncan, Ed Motta, Eliezer Setton, Gereba, Jota Morais e Olívia Byington.
www.lucianopires.com.br/cafebrasil/podcast
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